O falo e a crise de uma masculinidade
- Yan Franco
- 26 de out. de 2023
- 6 min de leitura

Em certa medida, todo homem (tomando como referência o homem hétero ''padrão'') é iludido com sua virilidade. A raiz dessa questão está no modo em que o homem significa o seu sexo, ou seja, como dá sentido a ele.
A psicanálise coloca que somos seres marcados por uma falta estrutural. No passado remoto de todo ser humano, haveria um fantasiado período de ‘completude’, em que todas as nossas necessidades eram satisfeitas numa perfeita homeostase psíquica que caracteriza a vida intra-uterina. Ao perder essa condição, dedicamos grande esforço em repará-la, como no exemplo da busca da completude através do par amoroso, bem representado pelo mito grego de que, na criação, o homem e a mulher compunham um só ser, até serem separados pelos deuses.
Freud explica que, em um determinado momento da infância, toda criança empreende a tentativa de significar seu sexo. Considerando que o infante é marcado por uma pobreza de representações e recursos para nomear e compreender o mundo ao seu redor, essa tarefa se mostra menos problemática para o menino que para a menina, já que o órgão masculino se projeta para fora e se põe à vista enquanto que o da menina se projeta para dentro, se pondo como um enigma para a criança. No inconsciente infantil, isso o que hoje para nós parece bobagem, toma a representação de que alguns possuem esse objeto, ao passo que para outros ele falta, criando a dicotomia não-castrado x castrado. Assim o pênis é simbolizado como um tipo de ‘‘órgão da completude’’.
Na psicanálise, esse objeto que simbolizamos como sendo da ordem de uma completude é chamado de ‘‘falo’’ e serve de referência para os outros objetos de desejo, que precisarão ter um ‘‘valor fálico’’ para que possamos reconhecê-los como capazes de aplacar ou ao menos aliviar-nos de nossa condição de incompletude.
Esse termo ‘‘falo’’ tem origem na teoria elaborada por Freud, um homem de um contexto bastante marcado pelo patriarcalismo da sociedade vitoriana, mas seu desenvolvimento teórico, sem dúvidas, vai no sentido contrário ao de marcar uma superioridade exclusiva do pênis justamente porque propõe que pênis e falo não são a mesma coisa. O falo na verdade é simbólico, ou seja, reside em elementos situados na cultura e no discurso.

Podemos ter um senhor de idade que, ainda que sexualmente impotente, seja desejado pela sua posição social e riqueza (nesse caso o valor fálico está no poder). Ou ainda, um homem de condição muito simples que seja admirado pela sua conduta honrada (neste caso no caráter). Portanto o falo não está no pênis, está nos olhos de quem vê.
A ilusão da masculinidade reside no fato de que, justamente, confunde os dois. O que acontece é que, como o patriarcalismo é uma marca da nossa organização social , faz coincidir a questão anatômica do pênis com a cultura que, em sua prevalência, situa o falo do lado do masculino. Assim o homem acredita que sua posição vantajosa é inata, naturalmente garantida ‘‘faz parte da natureza do homem’’, já se nasce com isso, assim como o pênis. Isso justifica, por exemplo, a crença masculina de que o saber está do lado homem (mansplaining) e por isso o que tem a dizer é mais valioso ao ponto de interromper a mulher (manterrupting).
O homem, por acreditar ser possuidor natural deste objeto, paga um preço. Sofre do que Freud chama de ‘‘angústia de castração’’(também simbólica), que pode ser traduzido como um medo inconsciente de ser destituído disso que acredita lhe atribuir tamanho valor, e por isso se vê impelido a performar uma potência e exibir sua virilidade para que assim os outros atestem a presença do falo em si, dando a entender que ele estaria fora da castração. Deste modo, a prevalência na masculinidade é a de que seu exercício, sua performance, prescinde de um tipo de crença em sua onipotência viril.
Crê que vai à guerra e retornará vivo, crê que pode dirigir no maior dos níveis de embriaguez e nada lhe acontecerá… Temos ainda o clássico exemplo: ‘‘Basta uma arma de fogo para que eu, o cidadão de bem, pai de família, proteja a minha família do crime e dos males da sociedade’’. A arma de fogo é uma prótese fálica que vem a calhar quando essa ‘onipotência’ masculina mostra-se insuficiente. O menor sinal de ‘fraqueza’ no exercício de uma masculinidade pode ser o suficiente para destituí-lo de sua posição. Um detalhe, um brinco na orelha errada, uma ‘desmunhecada’ já são suficientes pra evidenciar que o pênis não garante nada.

Isso institui no homem o vício da virilidade. A mulher sabiamente mostra o quanto é fácil generalizar o masculino através dessa marca homogeneizadora do homem, que, ao vestir a carapuça replica: ‘‘Ei, não generaliza…’’ Já a significação sexual no feminino funciona de modo diferente. A mulher, na performance do seu sexo, não é escrava de alguma coisa como o homem é da virilidade. Assim, a mulher pode ser submissa, pode ser forte, pode ser dominadora, pode ser objeto, pode ser ou não ser mãe… Tudo isso sem deixar de ser mulher.
Para que o pênis seja falo, necessita ser reconhecido pela mulher, pois, para o homem, a mulher é a principal sede da realização do falo. Se o homem não pode dar provas de que tem aquilo que a mulher deseja, pode ter sua masculinidade questionada. A castração mais violenta e portanto mais temida pelo homem é a que vem da mulher.
Com a gradual ascensão e popularização do pensamento feminista na sociedade, as mulheres vêm, cada vez mais e no dia-a-dia, conquistando espaços de poder, reivindicando direitos e questionando privilégios. O acesso à posição fálica vem sendo democratizado em detrimento de uma progressiva perda da supremacia masculina. Desse modo, o feminismo mexe com a angústia de castração do homem, que se sente ameaçado.

Freud dizia que o homem, em sua constituição psíquica, tende a fazer uma separação entre amor e desejo. Devido a essa divisão característica ele polariza a mulher nas categorias de ‘‘Santa’’ e ‘‘Puta’’. Exalta a mulher ‘‘recatada e do lar’’ como digna do seu amor, mas fantasia com a ‘‘puta’’ para o prazer. Sabe-se que a infidelidade é maior do lado masculino. Muitos homens tinham (e vários ainda têm) em casa a sua esposa, aquela para o qual era reservado o amor, a procriação, e na rua a sua amante, para a qual era reservado o desejo, a satisfação sexual.
A questão é que, cada vez mais, tem sido difícil para o homem médio situar a mulher em sua fantasia. Com uma maior liberdade sexual conquistada por elas e, ao mesmo tempo, a luta para barrar os diversos tipos de assédio historicamente naturalizados como parte da performance da masculinidade, os homens dão de encontro com mulheres que buscam o prazer e a liberdade sem admitir um tipo de rebaixamento que as tornem indignas de amor e respeito. Isso incomoda o homem.
A mulher, hoje com sua sexualidade mais legitimada e esclarecida, espera do homem um determinado desempenho, espera, mais do que nunca, obter satisfação sexual. Muito se fala hoje dos homens que não sabem aonde fica o clitóris. Ao passo que isso acontece, hoje o homem encontra barras na cultura para subjulgar a mulher em sua fantasia e, paralelamente, no âmbito sexual, ainda é convidado a performar sua virilidade/potência.
A crise moderna da masculinidade reside no fato de que o homem se vê numa encruzilhada em que, de um lado, assiste uma queda gradual da centralidade fálica na estrutura social, pondo à prova seus privilégios e, de outro, ainda é convidado pela mulher, a sede da realização masculina, a performar uma sexualidade viril. Por confundir pênis e falo, anatomia (natureza) e cultura, o homem resiste em elaborar sua castração e construir um novo exercício de masculinidade.
Cada vez mais nos distanciamos de uma lógica binária do 0 e 1, que compreende a mulher como o 0 (conjunto vazio, marcado por uma ausência) e o homem como o 1 (positivado pela existência fálica) e caminhamos em direção a como os sujeitos se situam nesse conjunto infinito entre 0 e 1. Não no sentido de uma extinção dos gêneros masculino e feminino, mas no sentido de que, como aponta o psicanalista Alfredo Jerusalinsky, a ‘‘investidura fálica’’ pode vir de um homem, uma mulher, de um ‘‘meio-homem’’ ou uma ‘‘quase-mulher’’, o que seja.




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