A tragédia do suicídio na adolescência
- Yan Franco
- 13 de set. de 2023
- 10 min de leitura
*Trabalho apresentado no Instituto de Psicanálise da Bahia no dia 06 de Setembro de 2023 sobre o conceito de passagem ao ato e suicídio na adolescência, baseado em um capítulo do livro de Hector Gallo ''Por qué se suicida un adolescente: pasaje al acto, urgencia y acto''

Em ‘’La tragedia del suicidio en los adolescentes’’, Hector Gallo faz um percurso sobre a noção de ‘’passagem ao ato’’ fazendo referência a 2 casos diferentes de suicídios de jovens. Nos dois exemplos, temos suicídios que foram planejados, de modo que não foram resultado de um momento de impulsividade ou ‘’loucura’’, mas sim resultado de ‘’um enfraquecimento existencial gradual que minou a possibilidade de construir um desejo que lhes permitisse ancorar-se firmemente no mundo dos vivos’’. Os dois casos também estão marcados por um desencontro amoroso, acompanhados de sentimentos de vazio, solidão e incompreensão do mundo, característicos da experiência de um real que irrompe de modo implacável para o sujeito.
O lugar do adolescente e da adolescente é inevitavelmente complexo, e é marcado por transformações psíquicas e desafios identitários. Durante essa fase, o adolescente passa por uma redefinição de seu próprio ser, confrontando-se com a questão crucial do sexo, da identidade e do desejo. É um momento de transição em que o sujeito se afasta das identificações infantis, mas ainda não se estabeleceu completamente como um sujeito autônomo. O adolescente está em busca de um desejo, tentando decifrar seu lugar no mundo e sua relação com o Outro. Essa busca frequentemente atravessa impasses, conflitos e angústias à medida que o adolescente procura sua própria voz, e tenta articular seu desejo num laço com um Outro que o ofereça a possibilidade de colocar-se no mundo como sujeito.
Geralmente, acredita-se que os adolescentes precisam ser vigiados e orientados com cautela, pois podem associar-se facilmente a desordem, o desajuste, o desvio, o vandalismo… Eles desafiam as normas estabelecidas, ‘’revelando a decadência da função social da família e a impotência do Outro simbólico, que já não existe mais como suporte da tradição.’’ É no campo desta impotência do Outro simbólico, representado pela família contemporânea, que o autor pontua o aparecimento de uma influência ''obscura'' que substitui a família e elimina ideais. O que essa influência transmite é a aniquilação e o sacrifício como a única possibilidade. Assim, não é incomum nem estranho que estes jovens se envolvam em comportamentos autodestrutivos, marcas de um gozo contemporâneo.
O autor cita exemplos de diversos tipos de ‘’grupos de pertencimento’’ que, nestes casos mais extremos, acabam por oferecer uma certa estabilização psíquica e organização do gozo destes adolescentes, desde grupos satânicos, grupos de dependentes químicos, o vandalismo, grupos armados ilegais, entre outros. Então seria em torno de significantes como “miliciano”, “paramilitar”, “banda”, “seita satânica”, “grupo religioso” que a construção de uma identidade coletiva seria possível. Oferecendo certo reconhecimento do indivíduo, justamente no ponto em que a família deixou de ser um símbolo de referência que orienta e regula o comportamento destes jovens.
Ao falar sobre a adolescência e a pulsão, o autor destaca que este momento particular do desenvolvimento não se resume apenas a compreensão de que a adolescência seria um período de descontrole ou desequilíbrio provocado pelo excesso de hormônios, mas algo que vai além do instinto biológico. Laplanche, em ‘’Vida e Morte em psicanálise’’ diz que, na verdade, é o instinto biológico quem chega tarde demais, quando a sexualidade já está funcionando a pleno vapor:
‘’Tarde demais é a sexualidade biológica, com suas etapas de maturação e, essencialmente, o momento da puberdade; essa sexualidade orgânica vem tarde demais, não oferecendo à criança (...) correspondentes “afetivos” e “representativos” suficientes para integrar a cena sexual e “compreendê-la”. Mas, ao mesmo tempo, a sexualidade vem cedo demais como relação inter-humana; ela vem como que do exterior, trazida pelo mundo do adulto.’’ (Laplanche, 1995, p. 50)
No adolescente, segundo Hector, falamos de uma maturação que não cessa de se escrever. Em cada adolescente, será testado em que medida essa escrita desejada foi alcançada, observando como o eu reage diante das das demandas da sexualidade e da agressividade. Do ponto de vista clínico, os caminhos de descarga pulsional estão relacionados com uma via previamente definida pelo sujeito, do lado de sua maneira preferencial de buscar prazer; por isso, são diretos e pouco mutáveis. Segundo Hector Gallo, o tipo de satisfação pulsional escolhido sempre está relacionado com as questões que caracterizam o real que escapa ao sentido convencional. Nessa tipo de satisfação (que é diferente do prazer como bem-estar, pois está inscrita na lei do gozo), às vezes, pode estar envolvido um caminho no qual coexistem, sem contradição, o horrível e o belo. O belo pode ser uma forma de antecipar a proximidade da passagem ao ato. Sendo assim, certas manifestações e expressões do sujeito de um certo estado contemplativo do seu cenário por meio da produção de algo belo podem, com frequência, aparecer antes da tragédia do suicídio.
Hector ilustra esta ideia com alguns elementos da poesia de uma adolescente. Sua produção traz um profundo saber sobre a relação íntima entre o belo e a morte, e é marcada por sua entrega amorosa a um outro que não lhe corresponde. Segundo Hector, podemos falar de mais do que um pequeno outro que é objeto de amor, mas também de um grande Outro contemporâneo que, por não ouvir o adolescente no momento oportuno, nem oferecer alternativas além do ‘’lucro’’ (referindo-se ele ao discurso farmacêutico), o deixa à revelia de um real violento, semelhante a um ‘’abismo irreconciliável’’.
Ele segue dizendo: ‘’Ninguém se suicida devido a uma crise temporária do ser; eles o fazem porque se sentem irremediavelmente afundados em um desejo de nada além de sua aniquilação. Aquele que toma a decisão de se suicidar constrói um discurso no qual todos os referenciais que o compõem o empurram apenas para o vazio sufocante que é manter a experiência da vida entre os seres humanos.‘’
Cada pessoa que fez parte do círculo social do sujeito suicida responde ao ‘’inevitável’’ do suicídio com um tipo julgamento pessoal de culpa e responsabilidade diante do que ocorreu. Surgem assim os questionamentos sobre quem pode ter influenciado o indivíduo, o que pode ter falhado em seu desenvolvimento subjetivo, como a dinâmica familiar influenciou ou se transtornos mentais podem ter desempenhado este papel. Além disso, paira também uma incerteza sobre a razão de ninguém ter conseguido intervir a tempo para evitar a tragédia. Essa especulações em torno do suicídio têm valor para os analistas, pois representam a tentativa de uma solução imaginária para lidar com o choque causado por uma morte inesperada e que, a princípio, parece inexplicável.
O suicídio ocorre quando o sentimento de exclusão, impotência, inadequação e desvalorização do ser se combinam com a queda de algo que, no campo simbólico, estabilizou e protegeu o sujeito durante sua vida. É uma decisão radical de não mais ser enganado pelos semblantes que protegem o sujeito do real insuportável. E, por mais que possamos especular, não se deve tentar explicar o real sobre o suicídio fora do próprio sujeito que o cometeu.
O autor contextualiza o fragmento de caso que irá nortear sua construção.Trata-se de uma jovem cujo material poético é oriundo de um caderno particular, deixado após a sua morte e com a devida autorização dos seus pais para a análise e compartilhamento do material. A jovem planejou cuidadosamente seu ato de suicida, despedindo-se de seus entes queridos e expressando em seus poemas o desejo de que sua morte não fosse em vão. A jovem agiu de acordo com ‘’o silêncio sombrio da pulsão de morte’’, que, por sua vez, só será interrompido pela produção simbólica, neste caso, pela escrita. São poemas de amor. Um amor vivenciado de modo dilacerante.
Hector nos chama a atenção para o fato de que, para um analista, o poema não desempenha a função de explicar o ato suicida e muito menos para atribuir a ele o valor de um elemento autobiográfico com o objetivo de deduzir algo sobre a estrutura ou sobre uma patologia do sujeito. Ainda assim podemos nos beneficiar de uma análise do material para ilustrar certas proposições.
Trecho 1:

Eu te dei toda a minha vida És tu, O rei da minha vida A vida da minha vida ...És tu, A morte da minha morte.
Trecho 2: Se não estás aqui... Quero te matar Se não me ouves... Quero te matar Se não me procuras... Quero te matar Se não me olhas... Quero te matar Se não me tocas... Vou me matar.
Ambos os trechos enfatizam a grande importância atribuída ao outro, que se torna "o rei da minha vida" ou até mesmo "a própria vida da minha vida". Isso reflete uma supervalorização desse outro, que figura como inalcançável, impossível, em detrimento de uma depreciação do ‘’eu’’. É uma queixa frequente dos adolescentes o sentimento de ser incompreendido pelo Outro, que não o escuta e ,portanto, não torna possível a elaboração de uma invenção particular. Em ambos os trechos, também é evidente a profunda carência de sinais de amor que vêm do outro. Esse outro amoroso parece também dizer algo deste Outro familiar e social que falha em oferecer um lugar de pertencimento, no qual o adolescente poderia ancorar algo do seu desejo, fazer laço onde ali figura somente um real avassalador. Hector, em sua análise, aponta que no segundo poema, a mudança do "quero" para o "vou". "Vou me matar" encerra o poema de forma definitiva e absoluta, ao contrário do "quero", que é repetido várias vezes. O sujeito, ou o eu-lírico, que inicialmente deseja matar o outro, se depara com falta de um sinal de amor que o resgate deste vazio, e acaba se tornando o objeto morto do poema, concretizado no ‘’vou me matar’’. Apesar da produção artística trazer consigo algo de um desejo de se fazer escutar pelo outro, por diversos motivos, o poema da jovem não consegue produzir o efeito necessário para que o seu ser seja salvo pela metáfora do amor, nem alcança o valor de uma sublimação que possa apaziguar o seu desejo de destruição. Na verdade, a sua produção tem a função de embelezar o momento em que se aproxima do ato suicida. O ato é um evento que marca o fracasso radical da solução sublimatória que poderia vir a ser o seu poema de amor. Hector diz: ‘’O poema não é aqui uma ode à vida e ao amor; é, ao contrário, uma expressão da fragilidade do ser, angustiado e sem descanso, um apelo ao amado que não responde. A distância entre o ser presente no poema e o outro que não responde ao ser chamado cria um espaço de silêncio onde o suicídio encontra sua morada preferida.’’
Uma das questões que saltam aos nossos olhos e ouvidos é: O que levaria, então, a esta mudança de posição do adolescente que decide não mais transitar somente no campo da escrita bela e trágica, mas busca consumar em ato o seu desejo de desaparecimento? O sujeito adolescente nos surpreende e nos choca ao mostrar que não é necessário todo o ‘’peso de muitos anos vividos’’ para que nos encontremos com a ideia de que não há mais nada por vir. Isso acontece quando, por algum motivo, o sujeito encontra-se identificado à condição do objeto que cai, como dejeto e se move em direção a evadir-se da cena.
Segundo Hector, a queda dos ideais do sujeito em relação à própria vida, ideais tão caros ao indivíduo na adolescência, são marcas de um mundo capitalista pouco acolhedor para espíritos sensíveis ao estético. Para o sujeito que comete o ato suicida, uma ferida real vem a ocupar o lugar do ideal. É a completa ausência de um suporte simbólico que possibilita saber quem somos e a qual lugar pertencemos, que produz essa decadência do ser. Ser quem não mais se enxerga dentro da cena que é o palco social. Ou seja, já que o Outro não responde, deixo de responder de um lugar de sujeito e me reconheço como um objeto fora da cena, permeado por um gozo destrutivo. A produção e a escrita figuram como um esforço de ainda manter essa convivência com o outro. A morte chega quando não há mais nada a dizer nem a ouvir. No último subcapítulo do texto, Hector Gallo faz uma importante observação ao tratar da posição do analista diante do suicida. Traz importância de não se fixar ao pensamento suicida como elemento central do discurso do sujeito, ‘’fazendo o que for necessário dentro do contexto da transferência para não permitir que o sujeito sucumba’’. pois essa queda do sujeito seria, para Lacan, o elemento central de toda passagem ao ato.
Para Hector, ‘’o esforço do dispositivo clínico proposto pela psicanálise é fazer com que esse colapso, que obscurece o amor pela vida, penetre na esfera protegida da ação analítica". Isso não pode nem deve se dar apenas no contexto da clínica particular, mas deve estender-se também ao contexto institucional e educacional. Nestes espaços, há a possibilidade de uma intervenção num tempo ainda mais ‘’adequado’’, pois muitas vezes os indivíduos que recorrem à análise o fazem por já estar com a alma colapsada ou à beira do colapso. É importante oferecer alternativas que não se limitem apenas às receitas psiquiátricas que hoje colecionam os jovens.
Interessante notar que essa angústia, este vazio que aparece nas queixas e nas palavras destes adolescentes, também se estendem para os profissionais de saúde mental que, na contemporaneidade, respondem do lugar de um excesso de prescrições e medicamentos. Lacan nos convida a não recuar desta lógica psiquiátrica que, por vezes, parece se colocar como o fim em si de um tratamento.
O analista oferece a sua escuta, fazendo o possível para transformar esse Outro que figura como inexistente em sujeito suposto saber. Ou seja, no campo do Outro que aparece como vazio, o analista pode, na transferência, oferecer um ponto de ancoragem ao sujeito suicida na medida em que algo de um saber e de um desejo circule nesta relação. Nem sempre este movimento acontece. Pode fracassar, mas em muitos casos é possível permitir que ‘’o Outro [...] alcance o status de uma isca que o analista permite que se constitua para um sujeito e, em seguida, se dissipe, revelando a falha do sujeito suposto saber. Na ausência do Outro que não existe, onde seu significado estava inscrito, surge o sujeito suposto saber como um efeito de significação gerado pelo dispositivo analítico.’’
Sendo assim, as ferramentas das quais dispomos para oferecer uma via que extrapole a alternativa quase unívoca da via medicamentosa seriam: o desejo do analista, a palavra, a escuta e a produção do sujeito suposto saber que, lembra o autor, só existe como efeito de significação, resultado do laço social analítico. A passagem ao ato ocorre quando a jovem fica exausta da tristeza e da solidão, incapaz de recuperar o amor perdido. Aos poucos este movimento de escrita se torna um diálogo com o nada, sem resposta. Toda decepção amorosa é caracterizada por um certo confronto subjetivo que exige recursos simbólicos do sujeito, e que cada um responde com aquilo do que dispõe. Em um momento como este, o sujeito se depara com a condição de ser objeto para o outro e corre o risco de deixar-se cair.




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